domingo, 21 de dezembro de 2008

Ensaio sobre Santa Catarina

Sempre ao final de livros e filmes tento tirar uma conclusão da história, algo como uma moral da mesma. Com Ensaio sobre a Cegueira não foi diferente. Quando terminei de lê-lo, tive a sensação de que aquele romance na verdade era um ensaio sobre a essência humana, que quando levada a situações extremas fica exposta. Valores como compaixão, solidariedade, principalmente solidariedade, deixam de existir quando é a sua vida, ou de sua prole, que está em risco. Despimos (nós, os ''humanos'') as roupas e as características que nos fazem homo sapiens para voltarmos à nossa origem, a animal. Aquela mais instintiva. No caso do livro, esse extremo é o inferior, de deficiência, de condições sub-humanas. Há, por outro lado, uma frase que diz que ''o poder não corrompe as pessoas, ele só mostra quem elas realmente são''. Ou seja, a essência exposta pelo outro extremo: o superior.
Quando vi as imagens de Santa Catarina, de pessoas catando restos de comida nos supermercados, o caos, a situação quase animal, só conseguia pensar no livro. Com a notícia de pessoas roubando as doações, aquilo era o livro, ou o filme, transformado em realidade. Não os soldados do Exército, ou os outros que surrupiaram casacos, tênis sem estarem passando por aquela situação. Esse são ladrões em qualquer caso. Mas me refiro especificamente aos que roubaram, como antes já havia saqueado supermercados, e que, na situação extrema, esquecem (esquecer não é propriamente a palavra), rejeitam (na falta de outra melhor...) qualquer princípio ético, racional, social e são movidos pelo instinto de sobrevivência, sua e de suas crias, exatamente como os animais.
Por outro lado, fico eu, cá com meus botões, pensando que seria muito fácil culpar um instinto por determinados desvios. Que este seria um álibi. Diz a Antropologia que não existe instinto. Tudo o que somos é ditado pela cultura. Instinto materno, sexual, tudo é balela. Que se um homem for criado num celibatário, ele pode simplesmente não sentir apetite sexual, entre outros exemplos.
Não escrevo para dar juízo de valor a essas pessoas, embora ache que, claro, devem ser punidas e são atitudes execráveis em qualquer situação. Só queria mesmo compartilhar essa relação entre o livro e Santa Catarina que não saiu da minha cabeça essa semana (além de outra, essa menos produtiva) e dizer que o Saramago é mesmo um gênio. Ou seria um visionário?

7 comentários:

Adrianna Coelho disse...


caramba! esse seu texto me comoveu...
li/vi o ensaio, vi (e quem não viu?) o caos em sc, e detecto como vc as semelhanças, as polêmicas, a "essência humana".

e sara(mago) é um gênio e visionário!

Anônimo disse...

Saramago recentemente declarou que "o ser humano não merece a vida". O Ensaio Sobre a Cegueira é um engodo que faz crer que "o homem é malvado", o que há uns 300 anos Rousseau já dizia, obviamente equivocado. O livro não passa disso.
É obra digna do autor que declarou ser um "comunista hormonal".
O "Gênio" de Saramago reside em pensar da mesma maneira que escreve, sem vírgulas, pontos ou sinais.

Equipe Sobrecasaca disse...

Isso tudo só porque o Saramago é comunista?

Anônimo disse...

Não
A história está cheia de bons escritores comunistas. Um exemplo no Brasil: Graciliano Ramos.
Mas acontece que alguns, como saramago, deixam a doença avançar sobre a obra.

jh.sil disse...

Gostei da sua relação. Saramago é foda justamente por isto: é universal! As 'sacadas' dele são puramente essências anímicas do homem. E podemos relacionar o ensaio com o nosso dia a dia, mesmo quando, aparentemente, não há caos como o de Santa Catarina. Digo isso porque o ser que se acha humano é o caos por excelência, creio.

Abraços, Julho.

Joao Vicente disse...

concordo! A essencia do homem é caotica, se nao fosse a cultura, a moral, a etica, nao poderiamos ve-la com um minimo de coerencia possivel, acho eu.

bjs

Joao Vicente disse...

agora tambem acho que o saramago nao nenhum visionario. como disse daniel, este assunto foi preconizado por rousseau e sempre foi recorrente nas ciencias humanas. o q saramago fez foi romancear esse dilema, algo como um 'mundo de sofia', só que mais cara-de-pau!

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